Todo o mundo lembra onde estava e o que estava fazendo quando soube dos ataques terroristas que causaram quase 3.000 mortes nos Estados Unidos, em 11 de setembro de 2001.
Eu estava em Nova York, onde fazia mestrado na Universidade de Nova York. Todos os dias, eu descia na estação de metrô do World Trade Center, atravessava a rua e entrava no prédio em que ficava o Wall Street Journal Americas, no qual eu fazia estágio.
Meu estágio tinha acabado alguns dias antes --então, por sorte, eu não estava na estação de metrô quando o prédio foi atingido.
Fiquei sabendo do atentado quando uma amiga me telefonou, dizendo "liga a televisão, acho que você não vai trabalhar hoje", ela disse, sem saber do fim do meu contrato de estágio. Enquanto eu olhava o segundo avião bater na segunda torre, ao vivo pela TV, catei um bloquinho e uma caneta, enfiei na mochila, e saí correndo em direção ao sul de Manhattan.
Peguei um táxi, mas andamos poucos quarteirões, logo o trânsito parou. Continuei caminhando pela Broadway. Na direção contrária, milhares de pessoas desesperadas corriam e andavam, fugindo do caos. Era como se um filme se desenrolasse à minha frente e eu fosse apenas uma espectadora.
Sentia como se o ar estivesse parado. Não parecia que eu fazia parte daquilo tudo. Não sabíamos se o ataque tinha acabado ou se ainda havia mais alvos na cidade. Eu me lembro de um homem gritando, mandando a gente fugir, porque um outro avião ainda estava voando e ia atingir a Bolsa de Valores.
Naquele dia, não consegui chegar até o chamado Ground Zero --a polícia já tinha cercado o local e eu parei na rua Canal, a cerca de um quilômetro das torres. Comecei a entrevistar sobreviventes. Fiz uma reportagem com os funcionários de uma lanchonete Subway que estavam distribuindo água e refrigerante de graça e ajudando as pessoas.
Todos os funcionários eram muçulmanos. As mulheres, que usavam hijab, seriam xingadas e alvo de cuspidas no metrô uma semana mais tarde, em meio à onda de islamofobia que tomou conta do país.
Mas as minhas memórias sobre aquele dia são prosaicas.
Imagine o que sentiu um funcionário de uma empresa na Torre Norte, que estava trabalhando em seu computador às 8h46, quando o avião bateu no prédio? E o controlador de voo que assistiu pela janela o segundo avião fazer uma curva e se chocar, a toda velocidade, com a Torre Sul?
O que pensou um bombeiro que tentava resgatar pessoas da segunda torre, quando o prédio desabou e ele ficou preso nos destroços? Qual foi a reação do então prefeito de Nova York, Rudy Giuliani, ao observar pessoas desesperadas se jogando dos prédios? E o presidente George W. Bush, dentro do Air Force One, que ficou sobrevoando os Estados Unidos sem saber onde seria possível pousar em segurança?
Em "O Único Avião no Céu - Uma História Oral do 11 de Setembro", o historiador e jornalista Garrett Graff reconstitui minuto a minuto os atentados terroristas que mudaram o rumo da história, através do olhar de pessoas que sobreviveram aos ataques ou foram afetadas de alguma maneira.
Para isso, Graff examinou 5.000 entrevistas e selecionou 2.000. Combinou relatos colhidos para arquivos de história oral de instituições como o Museu do 11 de Setembro e o Pentágono, com entrevistas que ele mesmo conduziu. Ao final, usou 480 entrevistas para compor a narrativa --e o resultado é um livro eletrizante, que nos transporta para o centro dos acontecimentos.
"Há uma nova geração aqui nos Estados Unidos e ao redor do mundo que não se lembra de como foi o 11 de Setembro, ainda que eles tenham crescido em um mundo inteiramente moldado pelo 11 de Setembro", diz Graff, que foi editor do Politico, colabora com o The New York Times e é autor de livros como "Raven Rock: The Story of the U.S. Government's Secret Plan to Save Itself -- While the Rest of Us Die", ou Raven Rock, a história do plano secreto do governo americano para se salvar enquanto o resto de nós morre.
Hoje em dia, diz o autor, uma história muito simples e organizada é contada sobre o 11 de Setembro. Eram quatro aviões, o primeiro bateu às 8h46 na Torre Norte, o segundo, às 9h03 na Torre Sul, um terceiro atingiu o Pentágono e o quarto caiu em um descampado no estado da Pensilvânia. Os atentados terminaram uma hora e 42 minutos depois, com o desabamento da segunda torre.
"Sabemos que foi muito mais que isso. É importante usar história oral para corrigir isso, para captar a experiência humana dessa história, não apenas os fatos daquele dia, mas como eles foram vividos. Havia um medo tão intenso, um caos, uma confusão, que a gente não captura quando contamos para as novas gerações o que aconteceu."
São histórias dos que foram salvos pelo destino, como Monica O'Leary, que trabalhava no 105º andar da Torre Norte, na corretora de valores Cantor Fitzgerald, e foi demitida no dia 10 de setembro à tarde. Quando ela foi mandada embora, a pessoa do setor de recursos humanos perguntou se ela queria voltar para a mesa dela e pegar suas coisas, ou se queria ir logo para casa. Ela resolveu voltar para se despedir de seus colegas. Foi a última vez que os viu. Morreram 658 funcionários da Cantor Fitzgerald que estavam lá no 11 de Setembro.
E de Michael Lomonaco, chef de cozinha do restaurante Windows on the World, Torre Norte, 106º andar, que resolveu passar na ótica antes de ir trabalhar, para consertar seus óculos, e por isso acabou se atrasando e sobreviveu.
São relatos daqueles que começaram o dia 11 de setembro de 2001 como se fosse só mais uma terça-feira de trabalho. Andy Card, que era o chefe de gabinete de George W. Bush, lembra dizer ao presidente americano naquela manhã de céu azul límpido que "deve ser um dia tranquilo".
Mike Tuohey, atendente da American Airlines que estava no check-in, fez um alerta a Mohamed Atta, que sequestrou o avião que bateu na Torre Norte do World Trade Center. "Senhor Atta, se não for agora, vai perder o seu voo."
O que sentiram as pessoas que estavam dentro dos aviões sequestrados? Betty Ong, comissária do voo American Airlines 11, ligou de dentro do avião para o escritório de reservas da companhia 20 minutos após a decolagem. "Ahn, a cabine não responde. Alguém foi esfaqueado na executiva, e, ahn, acho que usaram spray de pimenta, está difícil de respirar. Não sei, acho que estamos sendo sequestrados", ela relatou.
Uma comissária que estava no segundo avião ligou para um atendente da companhia e narrou o atentado em tempo real. "Estou vendo água. Estou vendo prédios. Estamos voando baixo. Estamos voando muito, muito baixo. Ai, meu Deus. Estamos voando baixo demais."
Como se sentiram as pessoas que estavam dentro do prédio em chamas e não conseguiram se salvar? Sean Rooney ligou para a mulher, Beverly Eckert. "Ele me pediu para dizer à família dele que os amava, e então ficamos falando de quanta felicidade tínhamos tido em nossa vida juntos, da sorte que tivemos de ficar juntos. Em um dado momento, percebi que ele estava tendo mais dificuldade para respirar. Perguntei se doía. Ele hesitou um momento e disse "não". Ele me amava demais para dizer a verdade. No fim, quando a fumaça ficou mais espessa, ele só sussurrava 'eu te amo' sem parar."
O então prefeito de Nova York, Rudy Giuliani, lembra o que sentiu ao ver um corpo caindo de uma das torres. Várias pessoas, encurraladas nos andares mais altos, sem ter como escapar e em temperaturas cada vez mais altas, se jogaram. "Eu gelei, parei, e fiquei vendo ele cair até chegar no chão. Foi uma experiência totalmente chocante. Eu tinha bastante convicção de que éramos a cidade mais preparada para emergências dos Estados Unidos, talvez do mundo. Mas isso ia além de tudo o que poderíamos imaginar."
Também há relatos da famosa cena em que Bush foi avisado do atentado, enquanto estava lendo com crianças em uma escola fundamental na Flórida. "Um segundo avião atingiu a segunda torre. Os Estados Unidos estão sendo atacados", cochichou em seu ouvido seu chefe de gabinete.
O livro revela a transcrição das conversas dos extremistas dentro da cabine do último avião, enquanto a aeronave está caindo num descampado no estado da Pensilvânia. Mostra a mulher que estava ao telefone com o marido e assistiu, pela TV, ao prédio dele desabar.
Na comparação com as obras da grande artífice da história oral, Svetlana Aleksievitch, vencedora do Nobel, o relato do 11 de Setembro tem mais temperatura e urgência. Mas a bielorrussa, em livros como "Vozes de Tchernobil", consegue se aprofundar mais em cada uma das histórias pessoais, ao ter relatos longos que não se restringem ao momento exato do acidente.
"Eu capturei a experiência coletiva por meio de uma pintura mais impressionista daquele dia, através de fragmentos de vozes individuais, de forma rigidamente cronológica --a história inteira acontece em duas horas. Era importante ter a experiência de todo mundo no mesmo momento".
Já o livro "O Vento Mudou de Direção", da jornalista Simone Duarte, fala do impacto do 11 de Setembro sobre pessoas que não estavam lá, mas que sofreram por anos os efeitos do mundo sob a Guerra ao Terror, que permitiu inúmeros abusos do governo americano em nome do combate ao terrorismo. Para isso, ela entrevistou sete pessoas vindas de três países de maioria muçulmana --Paquistão, Afeganistão e Iraque.
De forma fragmentada, ela conta as histórias do afegão Rafi e da afegã Gawhar, que fugiu do Afeganistão ocupado pelos americanos rumo à Europa, de Ahmer, um jovem treinado pelo Talibã paquistanês para ser homem-bomba, do jornalista Baker Atyani, que fez a última entrevista com Osama bin Laden antes dos atentados, do general Ehsan Ul-Haq, ex-espião dos serviços de inteligência do Paquistão, da poeta iraquiana Faleeha Hassan, da iraquiana Gena, que fugiu para a Síria.
"Os Estados Unidos tiveram um 11 de Setembro, já o nosso 11 de Setembro, com mais de 70 mil mortos, ainda não terminou", diz a certa altura o general paquistanês Ehsan Ul-Haq.
Duarte, que foi correspondente internacional, era chefe do escritório da TV Globo em Nova York na época dos atentados e entrou no ar ao vivo, por telefone, falando sobre o acontecimento. Ela resgata as gravações da época.
A ideia de mostrar o impacto dos ataques terroristas durante anos sobre a vida de pessoas cuja única "culpa" era terem nascido em países de maioria muçulmana é ótima e necessária --e mostra como o mundo nunca mais foi o mesmo após o 11 de Setembro. Mas as narrativas intercaladas confundem um pouco o leitor, e deixam as histórias entrecortadas.
Por Patrícia Campos Mello / Folhapress
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