O coração de Humberto Ferreira Borges, 52 anos, bate tranquilo, a 150 metros do chão. Lá do alto, o montador de andaimes não tem com o que se preocupar. Ao contrário, o peito se enche de orgulho, o sangue circula cheio de alegria. “Não tenho um pingo de medo de altura. Meu coração só aperta quando não posso alimentar minha família”, diz Humberto, pai de 11 filhos. É por isso que, nos últimos dias, mesmo com os dois pés firmes no chão, está com o coração na mão.
[caption id="attachment_17275" align="aligncenter" width="620"] São muitos os rostos, na verdade milhares, que dependem do Estaleiro para sustentar suas famílias (Foto: Mauro Akin Nassor)[/caption]
Desde que o Estaleiro Enseada Paraguaçu (atual Enseada Indústria Naval) e o Consórcio Estaleiro Paraguaçu (responsável pela construção do empreendimento) demitiram quase 6,7 mil trabalhadores, Humberto e outros pais e mães de família sofrem com uma insuficiência no orçamento e respiram com a ajuda do seguro-desemprego. A obra, que por três anos bombeou dinheiro, esperança, progresso e emprego para uma região rica em cultura, mas extremamente pobre, agoniza pela crise. Está praticamente parada.
Coração grande, quase todos os filhos, inclusive a caçula, de 7 anos, e a mais velha, de 26, moram com Humberto. Sustentava a casa junto com o filho, também demitido da empresa. Agora vive do seguro e de bicos. “Na hora do aperto, todo os 11 batem aqui na porta. Todo mundo depende da minha renda”, lamenta. Agora, assiste incrédulo o naufrágio de um projeto que prometia ficar na região, no mínimo, por 40 anos.
“Quando eles chegaram, brincaram dizendo que a gente podia jogar a carteira de trabalho fora. Porque a gente não ia precisar mais dela até morrer”. Humberto trabalhou um ano, um mês e 17 dias no Estaleiro. “Sinto saudade dos camaradas, da amizade com os colegas. Era muito, muito bom”. Humberto é nascido e criado em São Roque do Paraguaçu, distrito de Maragogipe, bem ao lado do Estaleiro. Mas os impactos das demissões foram longe.
O “enfarte” do coração econômico do Recôncavo reverberou em Salinas das Margaridas, Nazaré das Farinhas, Saubara, Itaparica, Vera Cruz, Santo Antônio de Jesus, na própria Maragogipe e em dezenas de povoados. Tanto que uma mesma cena é marcante em todos esses lugares: homens e mulheres, sobretudo homens, ficam sentados nas praças e calçadas, sem camisa, jogando carteado ou dominó. Muitos estão vestidos com a calça laranja que usavam como farda no Estaleiro. Em qualquer município e seus distritos, ali está a calça de cor chamativa, vestindo pais de família cabisbaixos e com o coração cheio de dúvidas.
“A gente tem um orgulho danado de ter botado o estaleiro de pé, quase pronto. Agora nos sentimos desamparados”, queixa-se Jorge Luiz Barbosa, 43, abraçado ao filho em uma praça de São Roque, junto com outros três colegas que também foram demitidos. Quando se tem sorte, é possível trabalhar como pedreiro ou seu ajudante.
[caption id="attachment_17277" align="alignleft" width="300"] Magno, 26 anos, em Salinas da Margarida, usando a calça laranja do ex- emprego. Vivendo de bicos[/caption]
Sem alternativa, muitos que haviam deixado uma atividade tradicional na região, a pesca, voltaram para o mar. João Epaminondas Filho, 42, trabalhou cinco meses como soldador na obra. Recebia R$ 3,8 mil por mês. Agora voltou a usar a rede de pesca e o jereré. Não lucra metade. “Voltei a mariscar. Mas no estaleiro vivi os melhores cinco meses da minha vida”, conta.
Em Salinas das Margaridas, o mecânico industrial Magno Rocha Cruz, 26, virou ajudante de pedreiro e pintor para sustentar mulher e esposa. “Nossa esperança é que volte. Tem que voltar. O trabalho dignifica a gente, né”, afirma, com a camisa jogada no ombro e a calça laranja.
Indiretos
Os estragos sociais vão além dos quase 7 mil diretamente demitidos. Primeiro porque há os milhares de trabalhadores terceirizados das dezenas de empresas que prestavam serviço ou eram fornecedoras do Estaleiro. Sem falar nos que perderam seus empregos em hotéis, pousadas, restaurantes e um sem número de estabelecimentos frequentados pela massa trabalhadora.
Em nota, a Enseada Indústria Naval explicou que as demissões são “fruto do processo de desaceleração em virtude do avanço físico da obra de implantação do seu estaleiro e da crise de liquidez que abateu a indústria naval brasileira”. Com a crise, o Consórcio Enseada Paraguaçu, responsável pela construção do estaleiro encerrou suas atividades civis. Logo depois, a Enseada Indústria Naval também paralisou as atividades industriais.
No pico das obras, o empreendimento chegou a ter mais de 7 mil funcionários. O número total de demissões é de 6.663. Neste momento, a empresa funciona com 337 empregados.
[caption id="attachment_17278" align="aligncenter" width="620"] Seu Humberto, pai de 11 filhos, um dos milhares de desempregados: “Tô com o coração na mão” (Foto: Mauro Akin Nassor)[/caption]
A Enseada explicou que “todos os desligamentos foram feitos de forma preventiva e responsável”. Nesse momento, são 7 mil corações, empregados e desempregados, torcendo para que algumas das principais cidades do Recôncavo voltem a ter vida.
Prefeituras param obras e investimentos na região
As prefeituras de Maragogipe, Salinas das Margaridas, Nazaré das Farinhas e Santo Antônio de Jesus tentam se unir politicamente para reverter a crise no setor. Maragogipe, onde está instalado o estaleiro e que teve cerca de 2 mil trabalhadores demitidos, é a mais atingida, já que perdeu R$ 1,3 milhão de arrecadação.
[caption id="attachment_17279" align="aligncenter" width="620"] Cena comum nas praças da região. Ócio forçado em São Roque do Paraguaçu, distrito de Maragogipe (Foto: Mauro Akin Nassor)[/caption]
“Ficamos de mãos e pés atados. Estávamos fazendo várias melhorias. Agora a reforma de nosso pier e a construção da ponte está parada”, disse a prefeita de Maragogipe, Vera Lúcia dos Santos, que anunciou o cancelamento do São João. “Sem condições”.
Em Nazaré, a prefeitura já tinha realizado estudos de aumento populacional. Com o estaleiro, em seis anos a população passaria de 29 mil para 100 mil habitantes. “A gente tem que se unir politicamente, usar os deputados da região”, aposta o secretário de Planejamento, Antônio Brito.
Retorno vai ocorrer só quando crise for superada
Semipronto, com 82% do avanço físico das obras, o estaleiro chegou a produzir partes de dois navios sonda. Previsão de retorno? Não há. Segundo a Enseada Indústria Naval, as obras de construção do estaleiro terão continuidade à medida que a crise seja superada.
“As obras para finalização serão retomadas quando a crise de liquidez vivida pela indústria naval brasileira for superada”. Por sua vez, o secretário da Casa Civil do governo do estado, Bruno Dauster, disse que já há um otimismo moderado no meio após o governador Rui Costa se reunir com o BNDES, Banco do Brasil, ministros e a presidente Dilma Rousseff.
“Enfatizamos a importância de se retomar os fluxos de pagamentos. Felizmente, temos tido feed backs de que a coisa está avançando. Já existe um otimismo moderado. Vamos continuar brigando para que os financiamentos se concretizem”, afirmou ele.
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